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Entrevista: Chagrin

ARTEFATO #4.569 | CHAGRIN

arte_passagem: Você é um artista que lida com vários meios: a pintura, o design, a filosofia, a fotografia. Como surgiu este trabalho Artefato #4.569 e como ele se relaciona à sua produção de tradutor de livros de filosofia, por exemplo?

chagrin: Na faculdade eu aprendi que o que importa é a ideia, e que essa ideia pode ser explorada através de diversas formas. Portanto não importa o meio, o que importa é o modo como uma ideia é trabalhada. Há alguns anos venho trabalhando com traduções e especificamente com traduções de livros que discursam sobre códigos de comunicação: números, alfabetos, imagens, etc. Esse trabalho inevitavelmente me sensibilizou em relação à maneira como esses códigos e meios nos influenciam. Ou melhor, como eles influenciam a nossa percepção da realidade. Esses códigos e meios são o que restam do passado.

Nós estudamos os resíduos culturais de civilizações antigas porque é a única coisa que resta – não há nenhuma testemunha viva do Egito antigo, por isso, a única coisa que podemos estudar é o que os egípcios deixaram para trás, seus códigos culturais: imagens bi e tri dimensionais, hieróglifos, objetos e arquitetura. Pensando assim, surgiu a pergunta, “como que o futuro interpretaria a nossa cultura atual?” e isso me levou a uma perspectiva alterada sobre os nossos códigos culturais atuais. Por exemplo, desde a invenção da internet as formas dos códigos usados online mudam numa velocidade assustadora a ponto de causar uma sensação de que o tempo está passando muito rápido. Ao olharmos websites, imagens ou plataformas de chat de 15 ou 20 anos atrás, a sensação é estranha porque parece que tudo aquilo aconteceu há um século atrás.

Os modelos estão mudando muito rápido, o que é atual hoje amanhã já vai parecer passado. E isso causa um impacto direto na maneira como nos relacionamos com o mundo e com os outros. Daí surgiu a ideia do Artefato #4.569, um suposto artefato do passado recente reencontrado durante um futuro distante.

a_p: O trabalho vem acompanhado de uma de cartela museográfica, em que o texto é escrito a partir de um futuro longínquo, questionando a permanência da tecnologia enquanto registro. Explica um pouco mais a ligação entre essas duas partes do trabalho, o adesivo e a cartela.

c: A cartela surgiu como um dispositivo formal para sugerir essa perspectiva do tempo em relação à obra. Um tempo fictício. Mas também tem outra dimensão – o fato do adesivo estar em inglês me fez questionar como que essa obra se encaixaria dentro do contexto da galeria no centro de SP, onde, em sua maioria, os que ali trabalham e o público que frequenta talvez não falem inglês. Uma das minhas preocupações era que a obra tinha de ser acessível a qualquer um que por ali passasse e assim surgiu a ideia da cartela, como se ali fosse uma vitrine de um museu de arqueologia, adicionado um nível de ironia à situação.

Eu acredito que toda obra tem de deixar alguma “porta” aberta para que as pessoas possam acessá-la de diferentes maneiras. Mostrar apenas o adesivo em inglês ali, naquele espaço, me preocupava, e dessa preocupação uma nova ideia surgiu. Por isso eu diria que essa obra é meio que um “site-specific”, no sentido de ter sido pensada e influenciada especificamente por aquele contexto.

a_p: Fale sobre o desejo e a tecnologia. No sentido da busca do desejo através de plataformas ou apps online.

c: A gente está sempre buscando, a gente não pára de buscar. E por isso que a busca online gera tanta frustração. Houve uma mudança do período pré-digital e depois no período pós-digital. No pré, era uma coisa mais concreta, a gente saía, via a pessoa e fechava o contrato ali. Ou então conversava, trocava telefone – mas o telefone era só para marcar um próximo encontro, porque a gente tinha que ligar para a pessoa, ouvir a voz dela. Toda a interação era bem concreta. Hoje a gente lida com a pessoa em um nível abstrato antes de encontrar em um nível concreto. E é daí que vem a frustração, porque isso cria muitos problemas, problemas de projeção. A gente projeta muito no outro, e o outro na gente. Ou então, a gente lê as coisas errado. A gente vê as imagens e as imagens não representam bem as pessoas; de repente pode ser uma pessoa incrível, mas ela não sabe tirar foto. E a gente olha as fotos e pensa, ah, não. E a gente deixa de encontrar, sendo que aquela pode ser uma pessoa incrível. A outra situação é a da balada. Você pode sair, encontrar, ter uma experiência, mas depois quando a gente começa a se comunicar no nível digital, de repente, as mesmas regras se aplicam, e isso eu acho absurdo, bizarro, porque a sensação que eu tenho é que existem regras meio abstratas – na maneira como o código no ambiente digital funciona – que se impõem à maneira como a gente se comunica. E eu digo isso porque esse trabalho faz parte dessa experiência.

Eu vivenciei a internet desde o começo, então conversei e a cacei online desde o começo e tive a experiência de todas essas plataformas diferentes e como elas funcionam. A maneira como as pessoas se comunicam mudou radicalmente ao longo dos anos devido a esses novos meios.

a_p: enquanto experiência artística, você diz da diferença entre a forma e o conteúdo, o trabalho personifica isso porque ele é cheio de símbolos, é codificado. E as fotografias são imagens homoeróticas mas também estão codificadas. Fala um pouco sobre isso: forma, conteúdo e como você os resolveu para esse trabalho.

c: Para as fotografias, usei imagens em branco e preto através de uma técnica chamada ASCII, uma das primeiras maneiras de se criar imagens com computadores, isso lá na década de 60. E é basicamente um código onde você estipula quais símbolos alfanuméricos você quer usar para substituir o que viriam a ser os pixels.

Nos primórdios da tecnologia digital, não existiam impressoras ou monitores que tivessem uma pixelização alta de 16 bits, de 32 bits ou agora 64 bits. Antigamente eram 8 bits, uns pixels muito grandes. Não tinha como produzir imagens coloridas ou linhas contínuas, com detalhes. Eles usavam aquela impressora do tipo “daisy wheel”, era como se estivesse criando uma imagem com uma máquina de escrever, onde cada letra era um pixel. Dependendo da espessura ou da forma da letra, umas criavam bastante espaço, outros criavam sombreamento, etc. E isso não é muito distante de outras técnicas antigas, por exemplo, os mosaicos e também o tricô – uma das primeiras imagens digitais.

As nossas imagens digitais, apesar de serem mais sofisticadas, seguem exatamente o mesmo princípio do tricô. Isso daqui pode ser usado como uma receita de tricô. Você pode fazer uma malha de tricô seguindo os pontos.

Tem uma outra dimensão que é a materialidade do código alfanumérico. As letras e números também são imagens e a gente pode explorar essa materialidade para criar outras imagens tal qual a poesia concreta, que nada mais é do que o reconhecimento da materialidade do código. Não da palavra, mas do código, ou melhor, da palavra como código. E disso a gente cria formas.

Usar isso nesse trabalho é mais como um lembrete, olhar para um passado bem recente com um olhar antropológico para mostrar que a gente ainda não avançou tanto assim. Essa tecnologia que a gente usa e acha super avançada, de ponta, não é tão distante daquilo.

a_p: e é bonito também porque essa forma – que você disse dos primórdios da internet – distorce a imagem, você não reconhece a temporalidade dessa imagem e recai no campo em que o desejo é também atemporal. E mesmo se aplica para o texto, uma conversa de 1998 que bem poderia ser uma conversa de 2018.

c: Claro, ela acontece hoje. É a mesma coisa quando você está no hornet, ou grindr, a primeira pergunta que a pessoa faz é “oi, curte o quê? da onde?” Se resumiu a isso, entendeu? E se a pessoa fala ativo e você também é ativo, ela nem quer mais conversar com você. Não tem encontro. Não tem nenhuma possibilidade de conversa.

Dessa questão do desejo, o desejo é perene. A forma é efêmera. A forma por qual a gente chega no desejo é efêmera, ela vai mudando o tempo inteiro. Antigamente era carta, depois telegrama, telefone, bar, bebida, conversa, xaveco. Ninguém fala mais xaveco hoje em dia. Ninguém faz mais xaveco. Mas o desejo continua, o desejo não morre. O desejo de ter o outro, de estar com o outro, ter uma experiência com o outro, isso não morre. Nunca vai morrer. Mas a forma como a gente chega nisso é o que muda.

a_p: você acha que tem algum encontro entre esse trabalho e o fato de ser exposto no centro?

c: sim, porque para mim, aquele lugar, o centro, é o único lugar onde eu cacei.

a_p: mas é um outro tipo de caçada, porque são os encontros diretos e físicos, com outras normas.

c: Mas que tem essa clandestinidade e por isso essas imagens são pornográficas. Porque eu ia, ia não, vou ainda, em cabines pornôs com vídeos pornôs e o sexo que eu faço com os caras é na frente desses vídeos pornôs, entendeu?

E antigamente eram cinemas pornôs, que ainda existem também, e a galera faz pegação assistindo aos filmes. A pornografia é sempre presente.

a_p: mas não só a pornografia, também tem o sentido dessa comunicação que é, a sua vez, incomunicável, você vai, mas você não fala, você não conhece.

c: nem sempre, mas é possível.

a_p: o que eu quero dizer é que tem esse arranjo, essa clandestinidade do encontro. Não é só a gente que vai, tem caras heteros que têm uma vida paralela e vão em busca de satisfazer o desejo. Eu queria chegar mais nesse lugar da linguagem. Tem alguma conexão?

c: tem, tem, é uma linguagem prática como essa linguagem da breve conversa do trabalho, entendeu? E de vez em quando nem tem conversa, a coisa é só no olhar, não tem palavras. Na maior parte, a conversa é prática e direta.

a_p: Não deixa de ser uma coisa recente, no sentido das grandes metrópoles. São muitas pessoas juntas, muitas pessoas ali, sem passado, sem futuro, em busca de uma só coisa que é sanar o desejo.

c: tem a ver com o momento. O desejo é perene. O sexo anônimo é perene, está em livros desde a época dos romanos, Satyricon, por exemplo, toca nisso. Nós é que somos muito mais pudicos que os romanos e os gregos. Muito, muito, muito mais pudicos. Mas eu entendo, tem um lado do sexo contemporâneo que é utilitário, que vem junto a uma cultura do imediatismo, do fast food, eu quero agora, tenho que me satisfazer e ponto. Mas a coisa não precisa ficar necessariamente só nisso. Eu tenho encontros regulares, casuais, com algumas pessoas já há três, quatro anos, pelo menos com três, quatro caras. São encontros puramente casuais e esporádicos. E é só isso.

A procura do sexo casual também tem a ver com a necessidade de ter um contato físico, hoje isso é mais exacerbado porque a gente tem tanto contato digital que de vez em quando há a necessidade do contato físico, e o contato físico hoje em dia acaba suprindo uma outra necessidade, que nem precisa ser sexo. As pessoas hoje em dia estão sentido uma carência afetiva maior do que uma carência sexual. Não sei se isso tem a ver com esse trabalho. No Japão, a indústria do sexo está passando por uma grande mudança. As pessoas, em sua maioria homens, agora procuram afeto ao invés de sexo. Eles pagam para alguém deitar de conchinha com eles e fazer cafunés, sem necessariamente transar. Eu acho que isso é um reflexo do distanciamento físico que a vida online está causando.

Com essa mesma conversa de chat, eu fiz um pulôver para mim em Berlim. Só que é muito texto, mas eu lembro de uma ocasião estar no metrô e ver um cara lendo, ele olhou para mim e começou a rir. Ele sacou na hora!

a_p: É curioso, porque é compartilhar um momento anônimo, privado, com muitas pessoas, né? E provavelmente muita gente terá passado pela experiência desse texto.

c: Sim. Claro. Do mundo gay, todo mundo já passou por isso. Mas por exemplo, as fotografias têm muito a ver de como a gente faz imagens, do ponto de vista técnico, estrutural, Seurat, o pontilhismo, é exatamente a mesma técnica, só que com métodos diferentes.

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