RENATA LUCAS
AMADOR E JR. SEGURANÇA PATRIMONIAL LTDA.
PERFORMANCE:
GRUPO MEXA
25 de Março de 2022 - 29 de Abril de 2022
Pega Leve
FELIPE MOLITOR
Se você está lendo este texto crítico, provavelmente não é alguém que anda pelas ruas de pés descalços. Caso esteja aproveitando a ocasião de abertura - ou qualquer outra apresentação-ativação da mostra - para a leitura, encontrando amigos, tomando cerveja, com certeza não estará descalço. Mesmo assim, é possível que a maior parte dos interessados e curiosos desta exposição, em suas datas menos festivas, sejam transeuntes descalços do centro de São Paulo.
Essa tola e triste ironia não é necessariamente requisitada pelos trabalhos apresentados por Renata Lucas e Amador e Jr. Segurança Patrimonial ltda.. Ela surge numa observação a contrapelo de um contexto urbano específico e concreto, repleto de um convívio social agitado, no qual a mostra se realiza: a ocupação de uma vitrine de calçada de rua, em plena Praça da República, no shopping térreo de um de seus mais celebrados edifícios. Certas operações artísticas da reunião desses artistas apontam e instigam determinados marcadores sociais, ainda que corriqueiros, referidos em traços básicos de consumo - como um tênis ou um uniforme, por exemplo.
Nos entrelaçamentos poéticos deste encontro, Lucas e a Segurança Patrimonial Ltda. se interessam sobre as condições de visibilidade e invisibilidade que incidem em estruturas e posicionamentos sociais, provocando situações que aludem ao absurdo preexistente em determinados espaços e relações de poder - principalmente aqueles mediados pelo dinheiro, valor agregado e status social embutido.
Como se estivessem em campo adversário, jogando contra esse perverso que habita o neoliberalismo tardio, o que os artistas fazem é dobrar a aposta com a real. A vitrine torna-se uma metáfora ideológica: o dispositivo que separa sutilmente os sujeitos de seus objetos de desejo, o material quase imperceptível que forja as fantasias de uma observação que, no limite, se destina ao mercado. Rente à rua, uma simples fatia de vidro que divide o espaço interno da assepsia publicitária e o imponderável do lado de fora torna-se brutal.
Os serviços propostos e prestados por Amador e Jr. Segurança Patrimonial ltda., devem provocar os momentos institucionalizados mais significativos desta exposição. Por não se tratar de uma ação de camuflagem no espaço expositivo, o segurança que leva goteira na cabeça para evitar que o chão se molhe demais acaba numa espécie de palco. Todos poderemos contemplar a performance com o devido distanciamento, o que a tornaria ainda mais artística aos calçados mencionados no começo deste texto. O foco de atenção aqui é para com os corpos, mas que corpos afinal? Fictícios ou não? O que os descalços então, poderiam se perguntar é: o que acontece no fim da tortura? Até onde vai ou qual deve ser o ponto de virada, o quanto de revolta precisa se acumular até irromper num revide?
Na obra de Renata Lucas, manequins despidos rompem com o vidro e, somente nas partes que ficam para o lado da rua, uma perna e uma mão, surgem produtos como meias, tênis, pulseiras e anéis. Através desse ato, o que está colocado é a inversão entre público e privado, onde o que é valioso está fora e o dentro é vazio, com os objetos para fora da vitrine. Não deixa de ser um convite à transgressão.
Expostas ao caos e ao imprevisível, as obras de arte desprevenidas podem ser roubadas ou furtadas, mesmo vandalizadas, seja por fetiche ou por necessidade básica. O ato não deve ocorrer na abertura ou encerramento da exposição, quando você, talvez, estará lendo este texto crítico. E o segurança, no aspecto mais subliminar da sua performance, mesmo oprimido, estará lá outros dias para vigiar qualquer sanha - de calçados e dos descalços.
Pode ser que na calada da noite, em uma hora de descuido, um assalto anônimo aconteça, fechando um ciclo de estranhamento, apropriação, ativação e, principalmente, um gesto simbólico de restituição que Renata Lucas e Amador e Jr. Segurança Patrimonial ltda. precisarão ser informados.