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Mortinha, de Flora Leite

por Mario Sagayama

 

Quem atravessa a Galeria das Artes, no centro de São Paulo, vê-se envolto por pequenas lojas e vitrines, dispositivos que condensam, em sua transparência, sedução e consumo. Se eficazes, as vitrines chamam o olhar, atraem à interrupção repentina do movimento: buscam fazer de quem passa um comprador, ou, no caso de Mortinha, espectador. É no núcleo e também na superfície dessa sedução que opera o trabalho de Flora Leite. Com um jogo complexo de inversões e remissões, o trabalho da artista se põe a dar voltas em torno do suporte da imagem e da figura que ali se projeta: a sereia.

Em uma primeira inversão, a transparência da vitrine dá lugar a uma superfície opaca em que apenas um furo invoca a ver o que se põe atrás: o que se esconde dos olhos orienta o desejo de ver. Indicando que há algo a ser revelado além da camada preta de vinil, o furo constitui um modo de visibilidade específico: demanda, a quem quiser ver, que se aproxime, que apoie a sua testa e mire; demanda que ceda seu corpo e faça da visão um ato: o voyeurismo. A esse prazer perverso de ver se conjuga um par ficcional: o corpo que se pôs diante das câmeras para ser visto, mas que em Mortinha, porém, indica um outro tipo de exibicionismo, não mais o dos peep shows, forjados para olhar à espreita, mas o do cinema e da televisão, seja ele erotizado, infantilizado, ambos.

Dentro de um copo, vemos projetadas imagens de sereias de diversas peças audiovisuais. Elas nadam, atravessam planos em uma montagem que busca transformar corpos distintos em um só – ilusão de continuidade que ressalta como o trabalho se organiza em torno de clichês. Mesmo em sua materialidade, o que poderia indicar uma operação literal – o líquido como superfície de projeção – nos leva, na verdade, da água à sua representação, já que ela foi tingida com pigmento azul. Nesse jogo com clichês, Mortinha opera distanciamento entre a posição do espectador e o que ele vê: sereia algo serena, que nada para fascinar o olhar da Indústria Cultural, e não para a apreensão voyeurística instaurada pelo furo. Isso, em mais uma inversão, propõe haver um resto de voyeurismo nas imagens forjadas para o consumo do olhar. Na mínima máxima proximidade de nosso corpo com a vitrine, de nosso olho com o furo, a imagem projetada produz um distanciamento que nos faz pensar sobre o regime do olhar aqui implicado. Infantil, nesse ponto, é não só a remissão à Pequena sereia, mas à sexualidade perversa polimorfa, como pensava Freud: o prazer de ver e ser visto, tocar e ser tocado, que funda nossa sexualidade em modos de prazer parciais. Isso diz, do desejo, que ele não corresponde a instintos de reprodução, mas a modos de prazer nos quais a fruição pode ser livre de finalidade.

Não só o diálogo com Duchamp, e seus Étant donnés, faz de Mortinha um intrincado cruzamento de temporalidades. A imagem projetada, e também seu silêncio, enfatizam a diferença entre a sereia greco-romana e a imagem que dela temos hoje, um híbrido de mulher e peixe, herança da versão medieval do mito. Representação esta que se distancia significativamente das sereias de Homero e Ovídio, cuja metade inumana era um pássaro – daí sua sedução advir do canto.

O elemento que estrutura as mais variadas versões desse mito, sabe-se, é a artimanha que deve ser empregada para que se pudesse ouvir, ou calar, o canto de sedução. O que é fundamental, para o mito, é que a voz das sereias deve, sempre, ser silenciada ou destituída de seu efeito: deve ter seu som calado ou ser ouvida em uma posição que impeça que se atenda ao chamado à morte. Na Odisseia, pôde Ulisses ouvir as sereias ao amarrar-se a um mastro. Puderam seus tripulantes continuar a remar apenas com ouvidos repletos de cera. Já na versão de Apolônio de Rodes, puderam os argonautas continuar a remar porque Orfeu, com a sua lira, calava o canto: com a linguagem musical, dissipava a fração de erotismo carregada pela voz. Contava-se, com sereias aladas, a história do homem, do prazer que o levaria à dissolução. Com seu nado, continua-se a contar a imagem, masculina, da mulher enquanto ser de outro reino: relegada ao corpo, não à linguagem; à bestialidade que o homem demanda ser coberta pelo véu da beleza.

Quando o dispositivo é fundado na transfiguração de um copo em aquário, o exotismo, implicado na ideia de assistir a seres marinhos no espaço urbano, é substituído pelo clichê da sereia cinematográfica – algo que aproximaria, sob o signo da violência, a produção de imagens com o cultivo de animais aquáticos. Isso pois a câmera, enquanto ferramenta de captura, operaria um gesto violento com a fração de mundo enquadrada. Gesto este que em Mortinha é duplicado pelo dispositivo: o aquário, vida destinada ao olhar – e que Latour ponha em questão o conceito corrente de natureza, alheia ao homem, estrangeira à cultura e, portanto, objeto de contemplação parece ser mais uma via de debate, principalmente se retomarmos trabalhos anteriores da artista, como Tempo livre (2011) e Chorão (2017). Resta saber se, com o gesto cômico – a meu ver, o traço mais instigante no percurso da artista, e que neste caso é produzido pelo título do trabalho –, o que Leite faz é subverter o ponto de vista do voyeur. Se assim for, sugere-se que reflitamos sobre o voyeurismo implicado na relação do olhar com o desejo: talvez sugira haver, sempre, perversão no olhar.

Mario Sagayama se formou em Letras na Universidade de São Paulo. Em 2017, concluiu sua pesquisa de Mestrado sobre Samuel Beckett. A partir deste trabalho, publicou o livro Ele fala de si como de um outro: ensaio sobre a voz em Samuel Beckett (2018, ed. Annablume). Em 2019, iniciou uma pesquisa de Doutorado em Letras sobre a escrita nas História(s) do cinema, de Jean-Luc Godard. 

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