THAIS GRACIOTTI
Janela
13 de Dezembro - 1 de Fevereiro
Para Thais Graciotti
Não basta coletar, é preciso compor.
[...] essas palavras nascem de uma conversa infinita e nesse mesmo momento um ciclone produz uma devastação sem medidas em Moçambique, um anônimo se afoga num mangue próximo a Salvador, um vazamento criminoso de óleo reforça o lugar de subjugação política do nordeste brasileiro e que o meu corpo, mais uma vez, precisa se recompor diante da vida. Nascem também de uma escuta precisa, de um espaço colado. Próximo, ele mesmo, das partes que o compõe. Essas palavras são, sobretudo, uma necessidade, ou mesmo um esforço, dos limites do pensamento a respeito da composição. Em outras palavras, tratam de um interesse nas potências do corpo em se refazer mesmo quando a ordem vigente são os ditames da morte. Este texto-depoimento tem como objetivo pensar junto e com o corpo. A partir de suas capacidades de resistência, refazimento, plasticidade e composição frente ao estado de fragmentação produzido pelo vivo. Há aqui o eco de uma pergunta: Como sustentar uma espessura frágil que nos permita a produção de diferença e ao mesmo tempo o não desmoronamento de nossos corpos? Que experiências de composição seriam capazes de nos manter unidos e ao mesmo tempo frouxos para que o exercício de criação e composição de novas partes possa ser uma realidade? [...]
[...] este texto-depoimento também diz respeito da observação desse trabalho aqui exposto. É uma conversa sobre observar esta imagem e habitar suas brechas, emendas e passagens. É uma mistura sobre histórias pessoais abrigadas sobre os motivos da arte. É sobre o invisível que se constrói a partir da experiência com a criação. Há no que vemos a imagem de um processo elaborado por mãos que decidem sustentar a imprecisão de uma paisagem composta por infinitos fragmentos forjados por rasgos, emendas, ruídos e supostos erros. Como se a paisagem fosse, antes de tudo, o exercício de elaboração de um horizonte em que a infinitude varia de acordo a nossa capacidade de compor, ou mesmo de imaginar a sua própria espessura. Qual a extensão dos horizontes que um corpo é capaz de compor? Qual é a engenharia de suas paisagens? Tudo isso sem perder de vista a importância da coleta das partes envolvidas nesse processo uma vez que compor, aqui nesse caso, é também o exercício de emendar experiências e existências à medida que o próprio tempo, em sua função radical, nos apresenta suas possibilidades. Nesse sentido, compor não é somente assumir a capacidade de elaborar paisagens, mas também de afirmá-las. [...]
[...] porque compor? Ou melhor, como compor em um tempo em que o fetiche das capturas parece anunciar a supremacia do fragmento como se essas partículas por si mesmas pudessem garantir uma navegação em um horizonte indeterminado? A partir da paisagem que observamos encontramos algumas outras estratégias para investigar essas questões. Uma delas está na ênfase da própria paisagem. Mas também no modo em como suas partes (fragmentos) se apresentam. Nas suas emendas e lacunas frouxas como se a qualquer momento um novo rearranjo nos horizontes pudesse vir à superfície das coisas. Essa escolha nos reforça que não tratamos aqui da composição como uma fixação, mas como uma capacidade, mesmo que efêmera temporalmente, de organizar narrativas possíveis de enunciação. Há nesse processo uma liberação do corpo que compõe. Sobretudo porque convoco nesse depoimento o território das liberdades cognitivas como uma poderosa ferramenta de produção de justiça para o nosso tempo. [...]
[...] por esse caminho enxergamos também uma dimensão de beleza. Não aquela ligada a um modelo ideal, mas das que nascem do encontro do corpo com sua melhor capacidade de composição em seus próprios territórios de expressão. Nesse sentido, talvez, seja necessário afirmar que ando em um momento em defesa da composição. Ela mesma como um estado intermitente, ou melhor, como se esse estado pudesse reativar um saber já presente do corpo junto a suas formas de refazimento, rearranjos e expressões por mais que estes sejam mínimos, fugitivos, translúcidos... novamente a mesma pergunta: Como sustentar composições diante de momentos em que a impossibilidade de expressão é uma regra cada vez mais violenta? [...]
[...]a paisagem que nos é oferecida nos relembra em sua inteireza que o importante para quem compõe (e cola) é uma espécie de borda que se cria entre uma parte e outra. Uma emenda entre mundos aparentemente incompossíveis trazendo desses encontros possibilidades de avizinhamentos e/ou diferenças. Se pudéssemos olhar as composições nessa perspectiva que paisagens elas nos ofereceriam? Sustentar as vistas e a visão mesmo quando o vento passa deixando lama se torna um desafio desse aprendizado. Nesse caso, acho que estamos falando de muitas coisas, inclusive de arte como um lugar de passagem. Me refiro aqui ao reaprendizado de toda essa arte de compor, que mesmo num lance veloz dos passos, faz com que nos esbarremos com o retorno a um tipo de fé diante de nossa própria capacidade de refação.
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Este texto foi produzido a partir de um fluxo contínuo de diálogos estabelecidos com a artista Thais Graciotti que se configuraram, entre tantas outras coisas, no projeto Janela apresentado no programa arte_passagem de 13 de dezembro de 2019 a 1 de fevereiro de 2020. Da “fuga” visual para o cotidiano cinza e veloz da cidade, da composição de montanhas à geleiras, todas as partes formam um degradê pictórico próximo a uma natureza ficcional. Produzido através de fragmentos coletados ao longo de anos de viagens Janela é um projeto em que Thais Graciotti nos apresenta possibilidades de reflexão a cerca das noções de paisagem, assim como, generosamente, nos expõe seu modo compositivo quando a colagem é também uma ferramenta de “organizar” as formas de pensamento presentes na ação.
TARCÍSIO ALMEIDA
Pesquisador, desenvolve projetos ligados a práticas artísticas contemporâneas, diálogos curatoriais e processos de aprendizagem coletiva. Atualmente dedica sua pesquisa aos acompanhamentos artísticos baseados em modos de criação comprometidos com formas de liberação, liberdades e justiças cognitivas a partir do campo das artes visuais. É mestre em psicologia Clínica pelo Núcleo de estudos da Subjetividade (PUC - SP) e professor no Centro de Artes, Humanidades e Letras no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB - BA) território em que desenvolve os programas de pesquisa e extensão Práticas Desobedientes e elixir;